Diário de bordo de uma viagem ao Sahara, limpo de poeira e de inutilidades e acrescentado de virgulas, uns anos após.
(…) Depois do jantar, é preciso tratar do carro – a coisa mais preciosa entre todas. Para já, o nosso feio e desconfortável UMM está em forma, mostrando porque é que, apesar disso, é tão estimado: porque aguenta «porrada» até mais não. Hoje limitei-me a ver a agua e o óleo do motor e a levar o filtro de ar ao mecânico para ser aspirado.
(…) Nada pior do que acordar de manha e hoje foi pior do que nunca. Acorda se ainda com noite cerrada e um frio de sepultar mortos. Nunca imaginei rapar tanto frio no deserto do Sahara. Procura-se fazer rapidamente um chá para aquecer, mas os dedos estado tão enregelados que, mesmo com luvas, não se consegue acender um fósforo senão a sétima ou oitava tentativa. Saímos das tendas como «zombies», perdidos de sono, transidos de frio, com o corpo todo amarfanhado como papel de embrulho. A tudo isso juntou-se esta manda a areia que nos cobria de cima a baixo, como se tivéssemos acabado de ser desenterrados. Há bolas de areia dentro do nariz, restos de areia no fundo da garganta, o cabelo parece arame farpado que se aguenta em pé sozinho e nado há Optrex que consiga limpar os olhos. Quando acordei hoje tive vontade de chorar.
(…) Acho que eu e o jipe já formamos um só corpo. Sinto os gemidos dele e ele deve sentir os meus. Estou coxo que uma perna, de tanto carregar na embraiagem (está-se constantemente a mudar de velocidade neste terreno). O pulso direito esta aberto, por causa das chicotadas do volante nas pedras e, apesar de ligado, dói-me em cada manobra. O braço esquerdo, ao menos, melhora e não parece infectado, graças ao tratamento de choque de Maleitas. Mas o pobre UMM esta pior do que eu. Ontem cai em dois buracões sucessivos, que me custaram dois pneus, uma mola e a coluna da direcção torta: agora as curvas é segundo o sistema «mais ou menos». Há outras avarias, menos graves, mas igualmente incómodas: o pára-brisas esta partido e espero que se aguente; o meu cinto de segurança não sai da calha, tanta é a areia que lá deve ter; o isqueiro, que dava tanto jeito para ligar a luz a noite, pifou; o travão de mão morreu – paz a sua alma; a buzina idem – o que torna ainda mais complicadas as ultrapassagens; os travões dianteiros também se foram e nos buracos deixei a panela e metade do tubo de escape. Mas anda, caramba!
(…) Pumba, tinha de ser! Vinha eu tão contente com o estado «magnífico» do meu jipe, comparado com tantos outros, e logo havia de estragar tudo a um dia de Djanet! Ainda por cima, numa estúpida corrida «espontânea», fora de pista, a saída do acampamento. De prego a fundo apanhei de repente três autênticos muros de areia, que pareciam rocha, ai de meio metro de altura cada um, e mandei três cangochas no ar, aterrando com a sensação de que o UMM tinha entregue a alma. Bem, ele andar ainda anda, mas faz pena vê-lo a andar. Com a suspensão partida e a coluna da direcção toda torta, parece um pato ferido na asa, todo acaçapado a frente e com uma roda para leste e outra para oeste. Guia-lo exige um esforço e uma capacidade de adaptação inimaginável, mas é assim que vou ter de me arrastar até Djanet e esperar que lá os mecânicos possam remediar qualquer coisa.
(..) Pista, pista, pista. Dunas, areia mole, «mar», «tdle ondulée», calhaus, «fech-fech», «face da lua» – todos os tipos de pista possíveis e para cada um deles uma técnica e um estado de espírito diferente.
(…) Estou aqui, a escrever, com o volante do jipe a servir de mesa. No meio deste caos, sinto este jipe como uma Casa.
(…) Este carro é um destroco de lata que eu arrasto, entre suplicas e gemidos.
(…) E um dia hei-de voltar a Tamanrasset.
In Sul Viagens, Miguel Sousa Tavares, A pista para Tamanrasset