Voltar á lista de artigos

No Açor com vista para a Estrela

O dia está limpo. Corre uma brisa agradável e refrescante de quadrante indeterminado. O termómetro regista 20ºC mas não acredito na veracidade do instrumento. O corpo não assinala temperatura tão elevada. Sentado à chapa do sol num abrigo de formações de xisto, o calor é suave e acaricia-me as faces, projetado pelas afiadas agulhas rochosas.

A vista é de 360º, alcança montes e vales distantes a perder de vista, numa circunferência perfeita. Daqui, aos 1232 metros de altitude, o meu epicentro é a Capela de Nª Senhora das Preces, com dois robustos marcos geodésicos plantados na retaguarda, em respeitosa pose de guarda contra os implacáveis ventos vindos do norte. Por alguma razão geodésica desconhecida, este é o único local que conheço com dois marcos, lado a lado, guardiões de cumes que estrategicamente ajudam a demarcar o território de norte a sul do país. Indiferente a questões menores, a capela instalada numa cumeada que se alcança por uma escadaria, tem a sua fachada virada a poente, com o litoral a adivinhar-se na linha do horizonte lá para os lados do Caramulo. O cair da tarde a esta altitude, muitas vezes acima do teto de nuvens, envolvido em pétalas de laranja e prata é de uma transcendência de pintores enlouquecidos com a experimentação de cores incontáveis e ainda sem denominação.

Ao lado, à direita, esculpido em robusta pedra granítica vinda de outras paragens, foi colocado em 1925 um cruzeiro, em substituição de outro de data perdida na memória do tempo, talvez há séculos, já que num dos lados está gravado que ali apareceu em 1371 Nª Senhora das Preces. Certo é que, aqui no alto do Colcurinho exposta ao tempo num dos pontos mais altos da Serra do Açor, equilibrada nas íngremes escarpas conquistadas pela tenacidade do Homem, na conquista da terra para a sua sobrevivência, este foi o lugar certo para instalar um altar de romaria e devoção. Perdida num incêndio nos anos sessenta do século passado, em 1982 ergueu-se a nova “Fátima das Beiras”, tal a devoção dos beirões pela sua Santa a quem fazem romaria em Junho.  

Nos vales profundos ao abrigo das encostas, aldeias de quase nenhumas casas, anicham-se umas contra as outras na procura de proteção contra os vendavais e as nevadas que muitas vezes as isolam do Mundo. Quando possível, socalcos equilibrados encosta acima sucedem-se em terraços que mais parecem pequenos jardins que, outrora pela força braçal e a persistência dos bravos lhes garantia o sustento arrancado ao xisto. Como seria todo este maciço montanhoso no tempo dos primeiros colonos e que necessidades os levou a desbravar e fixarem-se em local tão remoto e inóspito.

A capela sem particular interesse arquitetónico, foi restaurada recentemente por fora. Na grandeza da paisagem esmagada pela potência do forte azul do céu e das inúmeras matizes de verde do coberto da flora, sobressai firme à neve e aos vendavais, o branco imaculado do pequeno templo singelo, farol das gentes vindas lá de baixo, das dezenas de pequenas aldeias, que vem pagar as suas promessas e exprimir a sua devoção.

No alto dos picos mais elevados o problema é o vento, soprando vigoroso e sem aviso. As folhas dos meus apontamentos flutuaram em reviravoltas de papagaios de papel comandados pelas mãos de crianças endiabradas, apostadas num jogo de voos e bolandas de abate a um inimigo invisível. Milagre, Nª Senhora das Preces atendeu aos meus rogos, correrias e tropeços, para no final resgatar todos os escritos. Abençoada!

A paisagem outrora despida da presença humana, está agora povoada em quase todos os altos por centenas de eólicas que, em nome da energia verde se apoderaram da terra e da paisagem com as suas torres gigantes e pás de rumar a favor do vento, num movimento ritmado e incansável. Poluem as vistas, e as encostas antes embaladas pelos sons da natureza, com um ensurdecedor rasgar do vento numa sinfonia rude e monótona. Sem futurismos de bola de cristal a esperança é que a seu tempo esta tecnologia, que até ao destemido Dom Quixote haveria de meter medo, seja substituída por outra forma menos “poluente” e mais eficaz de produzir energia e que devolva à montanha a paz e termine com este moderno tipo de poluição e agressividade aos sentidos.

Aconchegado no meu abrigo decorado de flores silvestres com camadas de xisto impossíveis de datar pelo tempo dos calendários, fecho os olhos e de ouvido apurado procuro os sons saudáveis da terra. Ignoro os decibéis das geringonças sem descanso, abstenho-me e aos poucos registo de forma ténue mas melodiosa o rastejar da brisa pelas fragas, os besouros em rodopio com o seu inconfundível bater de asas. Pássaros indiferentes a intrusos chilreiam no seu voo ao sabor do vento e o coberto vegetal rasteiro firmemente agarrado ao solo valsa, ao passar da brisa. A natureza persiste!

Ao fundo da ravina adivinho o solene Piodão, sempre de luto no seu cinza lousa, no mar de telhados quebrados pelo branco da esperança da singela igreja, envolta numa muralha de pedra talhada pelo querer do Homem na busca do conforto e segurança.

No alto do Colcurinho não se avista o Piodão. Afinal viveu séculos escondido no fundo do vale junto à ribeira que lhe permite a subsistência, longe dos olhares, habitado no passado por uma raça de gente com a persistência dos crentes. No largo da aldeia o busto do saudoso cónego Manoel Fernandes Nogueira, recorda a figura do homem que revolucionou a terra, zelando ainda hoje pelo bem-estar da população. Nos Penedos Altos com vista privilegiada sobre a aldeia, Miguel Torga numa visita de romeiro em 1991, deixou gravado na pedra uma ode à sua busca pelas raízes Lusitanas:

Piodão, 7 de Abril de 1991

              Com o protesto do corpo doente pelos safanões tormentosos da longa caminhada, vim aqui despedir-me do Portugal primevo.

             Já o diz das outras imagens da sua configuração adulta. Faltava-me esta do ovo embrionário.

                                                                                                                                                  Miguel Torga

Em contraste o Açor está engalanado de cor. Quase no final da Primavera, adivinhando-se um verão quente, o coberto apresenta-se reluzente de vegetação conforme as faces da montanha, ora verde ora com matizados de amarelo de urze virados a oeste, num tapete que trepa onduladas colinas e fixa o olhar pela magnificência que empresta à paisagem. Vibrantes matos, fetos ou giestas que aqui ou ali salpicam a vista com os amarelos fortes e indefinidos, transportam-nos para um mundo de fábulas. Troncos de pinheiro carbonizados ornamentam a paisagem com os seus esqueletos podres de tantos invernos, negros como o carvão. O contraste triste devido a causas catastróficas é um desafio à imaginação, com estes soldados derrotados, mas firmes no seu posto até ao fim. Eretos do que resta dum jardim de verdes tratados com carinho pela Natureza, mas derrotados pela força devastadora do fogo. Não há palmo de terra no Açor que não tenha sido devastado pelas chamas ao longo dos anos. Este é o grande flagelo da Serra, sem fim à vista. 

Refugiada na imensidão da Serra, indiferente a sentimentalismos bucólicos, preocupada com aspetos mais práticos, uma fêmea de javali vagueia com as suas crias a coberto de uma manta de fetos que, lhe garante ,  alimento e a segurança da família. 

As estrelas iluminam cintilantes todas as noites a sua Serra. Os Açores deram o nome a esta nossa maior montanha de xisto com o pico mais alto na Cebola aos 1418 metros, assim como ao nosso Arquipélago mais remoto plantado no meio do Atlântico. Lá, nas alturas, as elegantes e felinas aves de rapina pairam em voos ágeis na procura constante do alimento que lhes garante a preservação da espécie, fazendo justiça à montanha com o seu nome.

Serra do Açor, Cume do Colcurinho, 05/VI/21

Carlos Ribeiro

Viajante, fotógrafo e escrivão atrapalhado.

Esta viagem pelas aldeias e serras do centro do país, nomeadamente, Lousã, Açor e partes da Estrela, teve lugar a bordo do meu companheiro de grandes aventuras, Nissan Terrano II Tibete, o qual se mostrou uma vez mais ávido de galgar montes e vales sem hesitações ou reclamações. O Terrano II é um 4X4 ágil, seguro e capaz de enfrentar todas as dificuldades com bom senso e segurança. Nos corta-fogos mais íngremes ou nos trilhos mais a pique, em inclinações a desafiar a gravidade, esta espécie nascida no Japão não se nega a nada. Infelizmente está em vias de extinção.

Fotografar é essencial! Depois de décadas a carregar equipamento fotográfico muitas vezes em regime de trabalhos forçados, agora viajo com a minha Canon G3X comprada recentemente em parte no freeshop de Gatwick, para desespero do vendedor indiano, tal o regateio, e o restante na baixa de Toronto, por ironia do destino na mesma loja onde adquiri a minha primeira DSLR.

Com esta fiel amiga, leve, bem construída, fiável e versátil, pela primeira vez consigo produzir as minhas imagens sem ser o equipamento o centro das atenções e preocupações mas exclusivamente uma ferramenta de trabalho.

© 2024-2025 Óbidos Off Road Center. Desenvolvido por 3RINDADE